sábado, 19 de dezembro de 2015

Primeiro dia

Quando terminou o ano letivo, André nem quis deixar os colegas escreverem na sua camisa. Estava de saco cheio daquela escola, da professora, dos alunos, de tudo. Morria de vergonha quando alguma gatinha perguntava onde ele estudava e tinha de responder: Antônio Austregésilo (isso lá é nome de escola?). Além de todo mundo zoar o nome, ainda tinha o fato de ser uma escola primária, ou seja, cheia de crianças de sete, oito anos. Enquanto André já tinha onze, em breve completaria doze e seria oficialmente um adolescente. Mas agora tudo ia mudar estudando na Henrique de Magalhães. Todo mundo respeita essa escola porque os moleques de lá são neuróticos. Toda semana tem porrada deles contra o bonde da Getúlio. Da região, a única escola que bate de frente com a Getúlio no porradeiro é a Henrique. André tava todo contente. Havia estourado a boa.

Na véspera do primeiro dia de aula nem dormiu. Ficou a noite inteira imaginando sua vida nova na escola dos grandes. Agora teria oito professores, um pra cada matéria. Poderia reprovar em até duas disciplinas e fazer a dependência no ano seguinte. Decidiu entrar logo na primeira briga defendendo a escola. Só assim ganharia o respeito. Caso contrário sua vida seria um inferno, ia ficar levando miolo dos mais velhos até chegar à sétima série. Deixou em casa os lápis de cor, as réguas, as canetinhas e só levou seu caderno do Flamengo e uma caneta bic. Ter um estojo não é uma boa ideia pra quem quer ser respeitado na escola. O último tempo antes do recreio foi de francês, André não entendeu nada, não conseguia parar de prestar atenção na monocelha do professor. Na saída, os colegas de turma diziam que cu em francês quer dizer pescoço. André ficou feliz em conhecer uma nova língua.

Na porta do refeitório estavam os moleques da Oitava. Não vai ter almoço pra ninguém, eles falaram. Bora geral pro banheiro, disse um moleque meio playboy de cabelo de chapinha pintado de louro. Chegando lá eles mandaram o papo de como funcionava a escola. Parecia justo. Todo novato tem que passar pelo teste, disseram. André pensou logo que seria pederastia. Não era. Era o teste da loira do banheiro. A loira do banheiro foi uma menina que se matou após ser estuprada no banheiro da escola. Quando alguém fala loira do banheiro três vezes na frente do espelho, ela aparece. Depois disso existem três opções: fugir antes que seu espírito tome conta do banheiro, ficar maluco com a presença da menina morta ou ser abduzido por ela para dentro do espelho, passando nele toda a eternidade. Uma vez André a desafiou e conseguiu fugir, mas sentiu tanto medo que prometeu a si mesmo nunca repetir o feito. Disparou para a rapaziada: ah, manda um teste de verdade, esse papo de loira do banheiro é pra assustar os menor lá da Antônio. André ardia. O moleque de chapinha então sentenciou: já que tu não acredita, vai ser o primeiro. Geral saindo do banheiro, rapaziada. Saíram todos, a porta se fechou, as luzes se apagaram. André pensou nos miolos que ia levar, nas gatinhas que não ia pegar, nos futebóis que ia ficar de outra, e tudo de terrível que aconteceria se fraquejasse naquele momento. Seu corpo tremia. Olhou no fundo dos olhos do espelho e fez a oração: loira do banheiro, loira do banheiro, loira do banheiro.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O Pato

Na gaiola do aviário: frango, galo, galinha, pato e pombo. Cheiro de prisão e de morte. A madrugada era alta e vi o pato fora da gaiola. Um herói. O pato. Superou todas as expectativas a respeito de sua existência na terra. Afinal, o que esperamos de um pato de aviário é que viva sua vida toda na gaiola, até ser assassinado, virar comida, depois merda.

Quack, ele me disse. E foi passeando pelo vasto campo de azulejo branco do aviário.
Era um herói. O pato.

Quando chegar a hora de virar banquete, seus algozes não serão capazes de desconfiar que ingerem um herói. Assim são os algozes. Não querem saber de nada além de encher suas próprias barrigas. Quanto a mim, resta ficar grato pela imagem de resistência naquela noite de quinta feira em que o mundo permanecia um mistério. Além de tentar traduzir com palavras humanas o manifesto do pato, que com seus quacks, berrava: Vão à merda donos de aviários, clientes de aviários deste mundo! Vão à merda com suas gaiolas e seus dinheiros, e sua fome, e sua sede de sangue. Eu sou mais do que vocês esperam de mim.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Festa de Aniversário

Vodka com tang. Vai rolar vários gummys neuróticos. Um menino comenta com o outro enquanto dou de cara com minha rua sendo arrumada pra festa. Antes de me mudar pra cá, já tinha visto coisa parecida: uma reunião de amigos com cerveja no isopor e uma fritadeira mandando salgadinhos quentes pra rapaziada. Mas agora a parada chegou a outro nível; tem uma mesa com um bolo gigante e muitos doces com fotos da aniversariante, que parece completar uns dezesseis anos. A rua está cheia daquelas cadeiras brancas de uso universal, daquelas que servem pra igreja, enterro, batizado, pagode, churrasco, dia das crianças, festa de aniversário. Uma galera espalha lonas pra proteger da chuva os convidados e o sistema de som. No caminho até a minha casa passo bem no meio da festa e acho graça na capacidade dos adolescentes de se levarem tão a sério. Estão todos muito arrumados. Os meninos com camisas pólo e tênis Nike. As meninas com vestidos, saltos altos, cabelos feitos. Moram todos por aqui. Existe um clima de que tudo pode acontecer: um beijo na boca, vários gummys neuróticos, uma mão no peitinho, um baseado no beco do fim da rua, arrastar ela pra treta. Da janela fico assistindo. Não acontece nada. O funk que toca é pouco e pop. A música que embola a festa de aniversário da adolescente que mora na minha rua é a da nova escola do Rap Carioca. A maioria das letras fala de balada, de maconha, de recalque e de sexo. Eu vejo o grupinho das meninas, o grupinho dos meninos. Eles se olham, se riem, se embriagam e nada acontece. São adolescentes dando uma festinha com vários gummys neuróticos na minha rua. Aqui na área, muitos da mesma idade já tem filhos, trabalham na obra, pilotam motos, cheiram cocaína, fazem essas coisas todas de gente grande. Mesmo assim, alguns desses adultos precoces estão inseridos no contexto dessa festinha de aniversário com bolo temático e tudo. Estão fazendo piadas com os amigos que dividiram a infância e agora dividem o copo e a memória. E embora os caminhos sejam muitos e os universos tão diferentes, nesse momento estão todos ali, juntos para cantar parabéns pra ela. Algo de inocente e puro acontece com a preocupação desses jovens de se arrumarem todos para comemorar a festa de aniversário na minha rua que não passa das duas da manhã. Muitas felicidades. Muitos anos de vida. 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

O bonde em Copacabana

Fui do Estácio até Copacabana à toa. A caixa econômica federal não renova senha se não tiver o comprovante de residência, fica a dica. Além da bolação de dar viagem perdida, carregava cinco livros nas costas e sentia o peso do conhecimento enquanto o sol resolvia dar o ar de sua graça. Fui caminhando em busca do ponto de ônibus observando as bancas de revista, as lojas em promoção, gente descendo do ônibus, gente descendo dos prédios, gente descendo do morro, todos pareciam ter um destino. Cheguei ao BRS1 e nenhum passava pela av. Brasil, passarela três, São Cristovão, Barreira do Vasco. Também não servia nenhum que parava no BRS2. O sol ardia. O mar estava perto e longe da minha realidade de moleque de calças jeans, mochila nas costas. No BRS 3 me serviam o 483 e o 484. Comecei a esperar. A simpatia de acender o cigarro para chegar o ônibus não funcionou, fui obrigado a fumar até o fim. 20 minutos... Uma mulher nordestina perguntou pro homem executivo branco de barba feita sobre o 484, ele não sabia. Uma mulher negra e gorda de cabelos loiros que estava com o filho no ponto, chegou para perto da senhora nordestina para tratarem do assunto. Eu ouvia. Decidi entrar no papo: com licença, boa tarde, o 484 ainda passa por aqui?  Também to esperando meu filho, respondeu à senhora nordestina. Há mais de uma hora, completou. Eu disse que agora ta tudo uma bagunça esses ônibus, elas concordaram. A mulher negra também era nordestina. Ela me disse que havia visto um 484 passando mais cedo. Nesse instante uma mulher branca de cabelos tingidos de preto disse que pegou o 484 de manhã para estar ali em Copacabana. Morava na Penha. Só servia ele. O 483 estava partindo da Siqueira Campos, ela disse. Ainda esperamos mais um pouco, reclamando da dificuldade que se tornou sair de Copacabana pra av. Brasil depois dessas mudanças nas linhas. Eu disse mais uma vez que agora ta tudo uma bagunça esses ônibus porque não perco oportunidade de dizer isso e elas concordaram porque é verdade. Sempre esteve, mas agora parece que está mais e além do mais, é o agora que importa, de fato. Alguém decidiu ir caminhando até a Siqueira Campos para pegar o 483. Fui junto. Fomos todos. Nenhum de nós queria encarar aquela dúvida e aquela solidão de esperar o único ônibus que não vem. A dificuldade de usar o transporte público nos unia e nós consolávamos a revolta um do outro. Um caboclo na calçada vendia miniaturas de móveis feitos de madeira. Duas velhas madames de Copacabana pagavam por elas. Dois homens negros gargalhavam enquanto levavam a geladeira com adesivo da Black Friday. A cidade girava debaixo do sol que faz meio dia, enquanto nosso bonde seguia implacável e indiferente aos olhares curiosos pela rua. Até que uma de minhas amigas saiu correndo pelo meio da Nossa Senhora de Copacabana, foi cortando os carros, o sinal estava aberto, as outras duas dispararam atrás, a mãe puxando o menino. É ele! Olhei. Era o 484. O sinal ficou amarelo. Minhas amigas chegaram ao outro lado da rua. Deram sinal. O semáforo ficou vermelho. Atravessei e entrei na fila enquanto o menino corria em direção à porta traseira. Entramos no ônibus e o motorista nos recebeu com um sorriso daqueles que proíbem reclamações sobre a demora. No máximo um comentário: ficamos mais de uma hora esperando, disse primeira a mulher nordestina. Ele respondeu sorrindo. Sorrimos de volta. Estávamos felizes. Sorrimos uns para os outros. Estávamos felizes. Um quarteirão a menos pra andar à toa nessa vida. Estávamos felizes. Enfim pegamos o rumo de volta para nossas casas. Estávamos felizes. Para passar pela roleta cada um de nós pagou em dinheiro ou em cartão o equivalente a três reais e quarenta centavos.